Quase 80 anos depois de composta, ainda é sucesso nas festas de Carnaval pelo Brasil afora a marchinha "O Teu Cabelo não Nega". O autor da proeza foi um carioca nascido na rua Teófilo Otoni, Centro do Rio de Janeiro, em 10 de janeiro de 1904. Lamartine de Azeredo Babo, o Lalá, compôs esta, em parceria com os pernambucanos Irmãos Valença, e outras cerca de 300 músicas sozinho ou com dezenas de parceiros nos tempos em que o Carnaval e a própria música popular brasileira vivia a chamada "Época de Ouro". Muitas de suas composições foram sucessos nos Carnavais das décadas de 30, 40 e 50, permanecendo até hoje. Sua primeira música gravada foi Os Calças Largas, em 1930, que tratava dos homens que usavam calças boca de sino.
Além de marchinhas, ele também incursionou pelo samba, músicas juninas, valsas, operetas e até pelo estilo sertanejo. Quem nunca ouviu em vozes consagradas No Rancho Fundo, feita em parceria com Ary Barroso? Isso sem falar nos hinos de clubes de futebol carioca, como Botafogo, Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama e América, do qual era torcedor. Algumas de suas composições nem chegaram ser a gravadas, estando apenas em partituras. Sua primeira música, Pandoran data ainda de quando adolescente e estudava no Colégio São Bento. Nessa época, chegou a compor letras de cunho religioso.
Em sua carreira, fez sucesso em programas de rádio, foi produtor, revistógrafo, humorista e teve breves incursões na TV, no fim dos anos 50 e início dos 60. A sátira, o humor escrachado, o nonsense eram suas marcas registradas. A obra de Lalá é considerada pelo biógrafo Suetônio Soares Valença, autor de "Tra-la-lá: Lamartine Babo ", "um caso à parte, pela apurada sensibilidade e pelo fino humor de suas produções". O compositor também se agregou, em 1929, ao Bando dos Tangarás, ao lado de Noel Rosa, Almirante, João de Barro (Braguinha), Alvinho e Henrique Brito.
Para citar apenas alguns de seus sucessos carnavalescos, que reinaram no Carnaval do Rio, entre 1932 e 1934, caracterizados por variados estilos - romântico, brejeiro, malicioso - além de O Teu cabelo não Nega, os foliões agradecem por Marchinha do Amor, Linda Morena, Moleque Indigesto, Aí, hem, A Tua Vida é um Segredo, Marchinha do Grande Galo, Grau Dez, Rasguei Minha Fantasia, A.E.I.O.U., Babo...zeira e Canção para Inglês Ver.
Canções sentimentais também fazem parte do seu repertório, com destaque para as valsas Eu Sonhei que Tu Estavas tão Linda, Mais uma Valsa, Mais uma Saudade e as sertanejas Serra da Boa Esperança e No Rancho Fundo. São de sua autoria também Senhorita Carnaval, Joujoux e Balangandãs e Cantores do Rádio. Seus principais intérpretes foram os cantores Mário Reis, Francisco Alves, com quem formou o grupo Ases do Samba, e Carmem Miranda. As três operetas que Lalá compôs, um dos gêneros musicais de que mais gostava - Cibele, Lola e Viva o Amor - nunca chegaram a ser gravadas. Abaixo: Francisco Alves, Gastão Formenti, Carmen Miranda, Breno Ferreira e Lamartine Babo:
Como a maioria dos compositores de sua época, Babo não tinha formação musical. Sua incursão pela arte se deu por influência dos pais, Leopoldo Azeredo Babo e Bernarda Preciosa Gonçalves de Azeredo Babo, que gostavam de música. O pai era frequentador assíduo das salas de espera dos cinemas, onde se apresentavam as orquestras. A mãe organizava saraus em casa, frequentado por músicos como Ernesto Nazareth e Catulo da Paixão Cearense. "Ele descrevia todo o arranjo, cantando a introdução, meio e fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever", afirmou o maestro Radamés Gnatalli. Destaque para as primorosas introduções instrumentais das músicas de Lalá.
Depois do seu falecimento, por ataque cardíaco, em 1963, as composições de Lalá já ganharam vozes mais atuais, como Erasmo Carlos, Chico Buarque, Maria Bethânia e Nara Leão, na década de 70; e nos anos 80, João Gilberto, Rita Lee, As Frenéticas e Chitãozinho e Xororó.
Contexto Histórico
Lamartine Babo fez parte de uma geração de compositores que ajudaram a formar o que, hoje, é a música popular brasileira, tendo no samba seu maior representante. Apesar de também ter entre suas obras alguns sambas, Lalá se especializou na composição de marchas carnavalescas, seguindo as influências de operetas e músicas norte-americanas dos anos 20, conforme o biógrafo Suetônio Soares Valença, autor de Tra-la-lá. Grande parte de suas obras tem as características nonenses do Dadaísmo, movimento cultural que atuava na Europa até o início da década de 20.
O sucesso de suas marchinhas carnavalescas aproveitou também o contexto de apoio governamental ao Carnaval carioca, pela então Prefeitura do Distrito Federal. Era assíduo nos concursos de músicas para a festa e participava ativamente de blocos de rua. No entanto, a partir de 1937, com o advento do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), no governo do então presidente Getúlio Vargas, e a censura que veio a reboque, os gêneros carnavalescos irreverentes como o de Lamartine Babo ficaram proibidos de utilizar a sátira em suas composições. Aos poucos foi de afastando das composições de Carnaval e só voltaria a compor um sucesso para festa em 1958, com Os Rouxinóis.
Larmartine Babo também se engajou na defesa dos direitos autorais dos compositores brasileiros. Após o afastamento do Carnaval carioca, no fim dos anos 30, entrou para a União Brasileira de Compositores (UBC), onde foi suplente de diretor, secretário, presidente, tesoureiro e, de 1958 a 1963, ano em que faleceu, foi indicado para conselheiro permanente da entidade.
Lalá também influenciou e recebeu influência do veículo vivia seus anos de ouro, o rádio, se utilizando de sua capacidade de propagação como canal para divulgação de suas obras e, principalmente, como profissão. Esteve à frente de programas de sucesso entre as décadas de 30 a 50, destacando-se Horas Lamartinescas Radioletes, A Canção do Dia, Perfis e Perfídias, O Clube da Meia-Noite, Trem da Alegria e a Vida Pitoresca e Musical dos Compositores.
Também esteve envolvido no Teatro de Revista, que fez sucesso no Brasil até o fim da década de 50, criando composições para o gênero. O cinema feito para o Carnaval, que fazia sucesso nas primeiras décadas do século XX, também contou Lalá - "A Voz do Carnaval", de 1933, dirigido por Humberto Mauro e Ademar Gonzaga; "Alô Alô, Brasil", de 1935, com direção de João de Barro (Braguinha), Alberto Ribeiro e Wallace Downey; e "Alô, Alô, Carnaval", de 1936, com direção de Ademar Gonzaga. Os filmes guardam cenas antológicas da história da música brasileira e do próprio cinema nacional.
Curiosidades
Música no trabalho
Após a morte do pai, a família passou por dificuldades financeiras. Lalá teve que abdicar da Escola Politécnica para trabalhar como office-boy da Light. Quatro anos depois, foi para a Companhia Internacional de Seguros, mas logo foi despedido porque seu patrão o viu batucando numa mesa, em horário de trabalho, e também mordendo a língua, cacoete que fazia quando estava compondo. O artista também chegou a dar aulas de dança, à noite, nos clubes Tuna Comercial e Ginástico Português, para complementar a renda.
Copidesque
Se especializou em copidescar canções mal feitas e mal arranjadas, transformando-as em grandes sucessos. É o caso de "No Rancho Fundo" e "Uma Andorinha não Faz Verão". O sucesso "O Teu Cabelo não Nega" surgiu assim. Escrita pelos irmãos João e Raul Valença, Lalá alterou a letra e alguns arranjos, além de criar a inesquecível introdução instrumental da obra.
Artista engraçado
Seu bom humor era marca registrada. Várias tiradas de sua autoria ficaram conhecidas. Durante uma entrevista: "Eu me achava um colosso. Mas, um dia, olhando-me no espelho, vi que não tenho colo, só tenho osso". No balcão dos Correios: Lalá foi enviar um telegrama, o telegrafista então bateu o lápis na mesa em Código Morse para seu colega: "Magro, feio e de voz fina". Lalá tirou o seu lápis e bateu: "Magro, feio, de voz fina e ex-telegrafista". Sobre sua voz fina: "Não tenho voz, tenho vez". Sobre sua magreza: "Eu era tão magro que não dava fotografias às minhas fãs, dava radiografias".
Polêmica autoral
O Teu Cabelo não Nega, seu maior sucesso, esteve envolvida em polêmica. Depois de Lalá fazer alterações na letra e no arranjo do frevo Mulata, dos pernambucanos Irmãos Valença, a fábrica lançou o disco para o carnaval sem dar crédito ao nome deles. Os Irmãos Valença, parceiros na autoria, reclamaram seus direitos e foram atendidos pela gravadora.
Abaixo: Hino do Vasco da Gama (1949), de Lamartine Babo
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