Não sabemos como, quando e porquê, mas a "música baiana" já fazia sucesso no Rio de Janeiro desde há muito tempo. E quando falamos em "música baiana" leia-se "música de temática baiana".
Uma das primeira músicas com essa temática é o maxixe
Cristo Nasceu na Bahia (1924), de
Sebastião Cirino e
Duque:
Dizem que Cristo nasceu em Belém
A história se enganou
Cristo nasceu na Bahia, meu bem
E o baiano criou
Moqueca e arroz-de-auçá / Manga, laranja e caju
Na Bahia tem vatapá / Na Bahia tem caruru
Cristo nasceu na Bahia, meu bem
Isto sempre hei de crer
Bahia é terra santa, também
Baiano santo há de ser.
Mas, segundo Ruy Castro, foi Ary Barroso que, nos anos 30, mais explorou essa fórmula. Apesar de ser mineiro, ele passou três meses na Bahia, em 1929. E, pelo jeito, esses três meses valeram por uma vida, visto a quantidade de músicas de "temática baiana" que ele fez:
Bahia (1931)
Bahia, terra do coco babaçu
Bahia, que tem muqueca e umbú
Baiana tem mandinga
Baiana tem feitiço
Eu sou da Bahia
E mereço um sacrifício
No Tabuleiro da Baiana (1936)
No tabuleiro da baiana tem
Vatapá, oi, carurú, mugunzá, tem umbú
Pra Ioiô
Se eu pedir você me dá o seu coração
Seu amor de Iaiá?
Quando Eu Penso na Bahia (1937)
Quando eu penso na Bahia
Nem sei que dô que me dá
Me dá, me dá, me dá, ioiô
Me dá, me dá, me dá. Iaiá
Se eu pudesse quarqué dia
Eu ia de novo pra lá
Na Baixa do Sapateiro (1938)
Oi Bahia ai ai Bahia que não me sai do pensamento ai ai
Faço o meu lamento oi/ Na desesperança oi
De encontrar nesse mundo
O amor que eu perdi na Bahia/ Vou contar
Os "temas baianos" pareciam casar bem com a voz de Carmen Miranda, tanto que, além de Ary Barroso, outros compositores lhe deram material para gravar: Canjiquinha Quente (Roberto Martins, 1937), Baiana do Tabuleiro (André Filho, 1937), Nas Cadeiras da Baiana (Portello Juno e Leo Cardoso, 1938), Na Bahia (Herivelto Martins e Humberto Porto, 1938)...
Então, a cantora já estava familiarizada com o tema quando gravou O Que É Que A Baiana Tem, de Dorival Caymmi (1914/), para o filme Banana da Terra. Mas, para a historiografia, parece que ali nascia a "baiana" Carmen Miranda:
A música que iria ser gravada no filme era Na Baixa do Sapateiro, de Ary Barroso. Mas, na última hora, ele decidiu cobrar cinco contos de réis para permitir que sua música fosse gravada para o filme. O cenário até já estava pronto quando aconteceu esse fato. Assim, a música de Dorival Caymmi "salvou" o filme, por custar menos e se adaptar ao cenário já feito...(a música de Ary Barroso seria usada anos depois por Walt Disney, para o filme Você Já Foi à Bahia?, de 1944)
Dorival Caymmi, ao contrário de Ary Barroso, era baiano legítimo, e fez uma música de "temática baiana" com palavras realmente "baianas":
O Que É Que A Baiana Tem
Dorival Caymmi
O que é que a baiana tem?
Que é que a baiana tem?
Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem!
Corrente de ouro, tem! Tem pano-da-Costa, tem!
Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem!
Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem!
Tem graça como ninguém
Como ela requebra bem!
Quando você se requebrar Caia por cima de mim
Caia por cima de mim
Caia por cima de mim
O que é que a baiana tem?
Que é que a baiana tem?
Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem!
Corrente de ouro, tem! Tem pano-da-Costa, tem!
Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem!
Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem!
Só vai no Bonfim quem tem
O que é que a baiana tem?
Só vai no Bonfim quem tem
Um rosário de ouro, uma bolota assim
Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim
Um rosário de ouro, uma bolota assim
Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim
Um rosário de ouro, uma bolota assim
Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim
Tudo aconteceu muito rápido: num sábado, o compositor Newton Teixeira gravou a música na voz de Dorival Caymmi (sem ele saber o motivo) e a levou para Carmen ouvir; ela não gostou muito, mas aceitou conhecer o rapaz; no domingo, Almirante levou Dorival na casa de Carmen, onde já estavam Braguinha e Aloysio Oliveira (do Bando da Lua), para ouvi-lo; dessa vez, a cantora gostou, e ficou decidido que O Que É Que A Baiana Tem substituiria Na Baixa do Sapateiro...Dorival ainda lhe explicou que "torço de seda" era o turbante, "pano-da-costa" era o xale e "balangandãs" eram os amuletos de ouro, prata, ferro, osso ou madeira, que as baianas usavam para pedir ou agradecer algo aos santos...
Dorival Caymmi receberia cem mil réis pela música e por ajudar a compor a cena (é como se Ary Barroso cobrasse 5 milhões e Dorival cobrasse 100 mil). E isso em 1938...
E a fantasia de
Carmen? Essa não era nenhuma novidade, pois as baianas já eram bem conhecidas no Rio de Janeiro, desde o século XIX, e quando começaram os desfiles das escolas de samba, o bloco das baianas foi um dos primeiros a se organizar. Além disso, usava-se muitas fantasias de baiana no
Carnaval, e muitas cantoras já haviam se vestido assim, antes:
Pepa Ruiz (1859/1923) em 1892,
Ottilia Amorin (desde 1926),
Aracy Cortes (1904/1985), desde 1928... Em 1933, apareciam baianas no filme
Voando Para o Rio, de
Fred Astaire e
Ginger Rogers;
Elisinha Coelho (1909/2001) usou uma em 1935, H
eloísa Helena usou outra em
Alô Alô Carnaval (1936)...
A inovação de
Carmen foi no uso dos "balangandãs". A foto abaixo foi colorizada pelo norte-americano
David Kauppi, em 2007. Por ela, podemos ter uma idéia de como era o vestido de
Carmen usado no filme
Banana da Terra:
Por precaução, ela guardou esse vestido para seus shows, e encomendou outro ao artista
J. Luiz, também conhecido como
Jotinha. Esse segundo vestido era feito com losangos, mas sem esquecer os balangandãs:
E foi com esse figurino que
Carmen Miranda recepcionou o ator
Tyrone Power (1914/1958) e sua então namorada
Annabella (1907/1996), no final de 1938. Ele a aconselhou a tentar a sorte em
Hollywood e ela acabou influenciando na "criação" do "salto annabella":